Quando o glúten é o vilão?
Atualmente a mídia tem destacado doenças em que o glúten está envolvido, porém muitas vezes essa abordagem é feita de maneira imprudente e sem a separação devida entre as doenças. É importante conhecer cada uma dessas três doenças e realizar as investigações necessárias antes da retirada do glúten da dieta do seu filho.
A doença celíaca é uma doença que pode apresentar sintomas sistêmicos e é mediada pelo sistema imune. O glúten, no intestino, promove uma cascata inflamatória. O resultado dessa inflamação é o dano da mucosa intestinal, característico da doença celíaca. A doença ocorre em crianças e adultos geneticamente predispostos, que são expostos ao glúten em associação com outros fatores ambientais.
O principal fator genético para a doença celíaca são os genes HLA classe II, o HLA DQ2 e o HLA DQ8, presentes no braço do cromossomo 6. Esses genes estão presentes em mais de 95% dos pacientes com doença celíaca.
Os sintomas gastrointestinais são comuns na infância. Apresentam-se como diarreia, constipação, vômitos, distensão abdominal, flatulência e dor abdominal. Os sintomas extraintestinais são a anemia ferropriva refratária ao tratamento, anemia por deficiência de folato ou de vitamina B12, baixa estatura, redução da densidade mineral óssea, retardo do desenvolvimento puberal, hipoplasia do esmalte dentário, aumento de enzimas hepáticas, estomatite, irritabilidade, fadiga, artralgia e artrites, abortos de repetição, infertilidade, irregularidade menstrual, manifestações psiquiátricas, ataxia, neuropatia e epilepsia. É importante destacar que a prevalência de doença celíaca nos pacientes com epilepsia é semelhante a da população geral.
A dermatite herpetiforme é uma das manifestações de doença celíaca e se caracteriza por lesões na pele, geralmente distribuídas simetricamente, acometendo cotovelos, joelhos, nádegas e região escapular.
O diagnóstico de doença celíaca é realizado na combinação de sintomas apresentados pela criança, investigação com testes sorológicos, através de coleta de sangue, e após, com a realização de biópsia do intestino delgado, através de endoscopia digestiva alta, em pacientes que estejam consumindo glúten. Os achados da biópsia característicos são vilosidades aplainadas ou atrofiadas, hiperplasia de criptas, infiltrado mononuclear na lâmina própria e infiltrado de linfócitos intraepiteliais.
Os testes de HLA–DQ2 e HLA-DQ8 são úteis para exclusão do diagnóstico de doença celíaca, uma vez que no teste negativo é improvável a ocorrência da doença. Não devem ser solicitados de rotina.
Estudos populacionais avaliando doadores de sangue, demonstraram que a doença celíaca não deve ser considerada rara no Brasil. A prevalência foi de uma para cada 214 pessoas em São Paulo. Outro estudo populacional de Brasília demonstrou a ocorrência da doença em uma para cada 184 crianças.
A ocorrência de doença celíaca é maior nas crianças com parentes de primeiro grau acometidos pela doença. Maior ocorrência também é encontrada em pacientes com doenças autoimunes como diabete mellitus tipo 1, tireoidite autoimune, hepatite autoimune, na deficiência de imunoglobulina A (IgA) e em pacientes com cromossomopatias como síndrome de Down, síndrome de Turner e síndrome de Williams.
A dieta sem glúten é, atualmente, o único tratamento efetivo na doença celíaca. A orientação é a retirada do trigo, centeio, cevada e o malte, subproduto da cevada. O consumo de aveia deve ser avaliado e acompanhado pela possibilidade de contaminação.
A alergia ao trigo, de forma diferente da doença celíaca, é uma reação imunológica em que as manifestações dependerão da rota de exposição e do mecanismo imunológico envolvido. O trigo pode ocasionar a alergia pela via inalatória, ingestão e contato com mucosa ou pele. A alergia alimentar pode apresentar sintomas no trato gastrointestinal, respiratório e pele.
O trigo pode ocasionar a alergia alimentar com sintomas imediatos ao consumo como angioedema, urticaria, prurido (coceira) em lábios e boca, broncoespasmo, rinite alérgica, dor abdominal, vômitos, diarreia e até anafilaxia, além da anafilaxia induzida por exercício. A alergia alimentar pode, também, se manifestar com piora da dermatite atópica e sintomas tardios em relação ao consumo, como dor abdominal, flatulência, diarreia, náusea, vômito e constipação.
O diagnóstico da alergia ao trigo é baseado em uma história sugestiva, exames que possam auxiliar no diagnóstico como o teste IgE específico, por coleta de sangue; teste de hipersensibilidade cutâneo (teste realizado na pele por alergista ou dermatologista) e teste de desencadeamento positivo (oferecer o trigo e verificar a ocorrências das manifestações). Testes como dosagem de IgG e exames na saliva não são úteis. Os pacientes com alergia devem evitar o contato com o trigo e eliminá-lo da alimentação.
Há, ainda, uma reação ao glúten que não envolve mecanismo imunológico, sendo nomeada como sensibilidade ao glúten não celíaca. Essa doença ainda é pouco compreendida e é definida por sintomas que podem ser gastrointestinais ou sistêmicos, que ocorrem após a ingestão do glúten e desaparecem sem o consumo do glúten. Para o seu diagnóstico devem ser excluídas a doença celíaca e a alergia ao trigo.
É necessário destacar, dessa forma, que o glúten não deve ser retirado da dieta sem a investigação médica adequada.
Dra. Camila Marques de Valois Lanzarin
Gastroenterologista Pediátrica
CRM 15533 | RQE 11858 | RQE 11133
Título em gastroenterologia pediátrica e pediatria pela Sociedade Brasileira de Pediatria
Mestre em Ciências Aplicadas à Pediatria pela Universidade Federal de São Paulo.
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